Calada

Meu avô tomava um rabo de galo como quem aprecia uma boa taça de vinho caro: girava, observava a cor, sentia o aroma, bebia aos pouquinhos enquanto divagava sobre as coisas da vida com os amigos no boteco. “Deus é mais! Não sei o que eu faço com aquela mulher antipática. Não para de reclamar. Só fala, aquela miséria”, chiou Claudino. “Medo eu tenho é de mulher calada. Quando a mulher cala, o coração está gritando. Perigo danado”, retrucou meu avô.

Anos mais tarde, lembrei-me do vovô ao ouvir o silêncio de Clara se estender por todo o livro A Casa dos Espíritos, da chilena Isabel Allende. Mesmo com todo seu amor ao inescrupuloso Esteban Trueba, Clara não pôde perdoá-lo por seus pecados e decide se calar. Ela passa anos ao seu lado, cumprindo sua promessa de jamais lhe dirigir a palavra novamente. Aquilo me impactou profundamente. O silêncio de Clara me dizia algo, assim como seus espíritos também lhe diziam.

Meus pais nunca me bateram. A lei da palmada já vigorava lá em casa. O que doía mesmo era o silêncio da primeira mulher da minha vida, minha mãe. Aquele silêncio cortava. Eu pedia, implorava que ela me xingasse, me proibisse a televisão, que me desse uns tapas, qualquer coisa. Silêncio, não. Silêncio eu não sabia como aguentar. O calar da minha mãe soava pra mim como o amor dela sendo dobrado ao meio, outra vez e outra vez, até ficar pequenininho e sumir pelos bolsos como um bilhete que já disse a que veio.

Meu avô tinha propriedade no assunto: foi casado três vezes. Na primeira vez que uma mulher se calou, sumiu com três filhos embaixo do braço e um quarto no ventre. Da segunda vez, ela já não dizia nada pra ele, mas falava pra outro. Da terceira vez, depois de uma briga com a vovó, viu sua mágoa se arrastar pela casa por semanas.

Nem seus sapatos no lugar errado arrancaram um resmungo da velha. Nem suas voltas tardias para casa cheirando a aguardente. Nada movia aquela palavra calada do lugar. Assombrado, meu avô foi buscar a vó no quintal naquela manhã, prostrou-se à frente dela como uma alma penada, quase transparente, e disse o que o silêncio dela queria ouvir: “Eu estou errado. Eu-estou-errado!”. “Vá te catar!”, respondeu com os dentes apertados sem parar de varrer o terreiro. Que alívio! A raiva sempre será melhor que indiferença. Quem briga ainda está lutando por algo.








Comentários

  1. Excelente! Parabéns Diego! É tão maravilhoso ler os seus textos. Leveza e verdades.

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