Susana

Enquanto todas as meninas da rua penteavam as bonecas, Susana dava bisca nos meninos pra tomar a bola. E teve aquele dia em que ela roubou o cavalo do avô e deixou todo mundo atazanado. O cabelo vivia como ela, solto no mundo, desgrenhado, aquele riso fácil era sempre certo. Havia algo entre ela e o chão, uma certa atração. Era tanto tropeço, tanta testa na quina, era tanta Susana menina no chão, que começaram a desconfiar — cresceria mesmo?

Enquanto isso, as meninas da vizinhança cresciam à volta, se enfiavam em saltos, estiravam-se, passavam batom. Susana não. Era tanto mundo pra ver, era tanto morro pra subir, era tanto campo pra correr, não dava pra fazer nada daquilo de salto. Seria burrice. Era tanto sabor pra sentir, era tanta vida pra dizer, parecia haver tão mais cor adiante que nos tons do batom.

E enquanto as outras meninas da rua liam bilhetes açucarados, Susaninha bisbilhotava nos livros outros segredos melhores, também sussurrados. Era tanta história pra ouvir, era tanta palavra encantada, era tanto saber dos antigos refletidos nas gafas. Parecer abobalhada de amor também podia esperar mais um pouco. Susana andava ocupada.

Anos depois, meio que do nada, se tornou um mulherão, conheceu um cara bacana e se veste melhor que todas as meninas da rua. Vê se pode? E é uma delícia ver que com muita frequência ela ainda se desmonta pra fazer uma careta, contar uma piada de estivador, comer um sanduba de dois andares, deixar que o cavalo dela a roube de si por aí.

Susana me ensinou como é bonito desenhar a nossa própria trajetória, ser autêntico nas rotinas, onde é mais difícil. Nem precisa bater de frente, nem precisa impor nada a ninguém, basta rir como quem não se importa, e partir para o que acredita. Basta ouvir aquele som calmo e sereno que vibra baixinho atrás do peito e diz — Viva seu próprio roteiro. Basta ir.

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