Quando chuva

Começava a chover e já tocavam as crianças pra dentro. Era uma correria doida: salvar a roupa do varal, desligar tudo que estivesse nas tomadas, cobrir os espelhos, tirar os pés do chão. Eu ficava ali, encolhido no sofá da sala, observando as pessoas apavoradas na rua. Tinham medo do quê? A chuva me encantava. Era a hora do banho do mundo.

A chuva era uma trégua, a hora calma em que só se ouvia o resmungar do céu, aquele velho cheio de dores nas costas. Ouvia-se também o som bonito das crianças da rua de baixo tomando a calçada, no finzinho do molhadeiro. Saíam correndo, chutando enxurrada, rindo frouxo, e eu, preso em casa. Brincar na chuva não era coisa de menino direito, me explicavam. Era coisa de moleque da rua, criança descalça e suja. As mesmas crianças que eu tanto invejava.

Um dia, voltando da escola, caiu o mundo em água. Era engraçado ver aquela correria de gente corajosa, gente educada, amalucados com medo de água. Não tinha prefeito, juiz, devedor do botequim, nem nada. A água igualava. Água fria é bem verdade. Aquela era a minha grande oportunidade.

Contrariando o ritmo da cidade, eu apaziguei o passo, quase parando e abri o rosto pra sentir as gotinhas fazendo cócegas na minha testa. Eu guardei a chuva nos meus cabelos, levei-a pra passear nas pontas dos dedos. Eu senti o gosto, um dos melhores gostos, o gostinho de estar acordado.

Naquele dia, ainda tão novo, eu senti que um dia conheceria alguém que como eu não teria medo. De arriscar, de se molhar, de parecer bobo. Não teria medo de frear a lógica pra perceber o valor íntimo do que importa bem pouco pros outros, mas que verdadeiramente nos toca. Alguém que seguraria a minha mão e viria molecar pela vida. Que soubesse separar o medo do que é real, do medo por garantia.

Enquanto o mundo corresse, a gente ficaria sentindo a chuva, sentindo a benção que é permitir-se ouvir o estrondo gigantesco que vem do espírito, quando chove bonito lá dentro do coração da gente.

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