Eu Comi Um Segundo

Como um planeta distante que se apaga sem fazer alarde, como uma estrela que numa noite guia e na
seguinte confunde, como a hora que se demora em completar pela falta do seu último segundo, você não está.

Cinquenta e nove, nunca mais meio-dia, nunca mais réveillon, nem amanhã, nem nada. Eu comi um segundo. De fome, de angústia, de saudade antecipada, eu comi o segundo que faltava.

Era o último e eu soprei o planeta e eu beijei a estrela, como meu penúltimo ato de crueldade. Eu queria que você se perdesse, eu queria que você se atrasasse, eu queria que a sua sorte virasse e você se arrependesse. Uma palavra a mais, um gesto que sobressai, um olhar que duvida e tudo se perde, toda uma vida, e eu queria mais. Eu queria tanto.

Dar um beijo antes de sair apressado acalmaria a sua pressa de me deixar? Pedir perdão mesmo sem saber outra vez o que fiz, ajudaria? Recuar, abaixar as vistas, perdoar, amar como se eu fosse os cantos do quarto e ele a cama com seus lençóis brancos esticados ao centro, algo assim salvaria? Qualquer coisa.

Se eu tivesse julgado menos, se eu tentasse perguntar menos, se eu tivesse medido melhor o espaço, haveria hoje tanto espaço entre nós? Se eu tivesse dito onde doía, se eu tivesse te acordado no meio da noite pedindo perdão pelo dia, se eu não esperasse a raiva se dissipar com a noite escura, você me entenderia?

Mas o dia não volta, a hora não desiste de ser, os minutos e os segundos não se cansam de seguir. Quem volta sou eu, eu sempre volto pra você, eu sempre retorno para aquele segundo de decisão que implodiu tudo, tudo o que a gente era pra ser e não foi. Não desistir é meu último ato de crueldade.

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