Esvaziar-se

A gente passa a vida juntando. Passa uma mágoa e a gente carrega, por puro apego de que talvez ela nos sirva pra algo depois. Vemos um ressentimento e guardamos,junto ao amargo que a vida foi dando. Ficam do lado do peso que nós criamos, embaixo da prateleira das frustrações, empilhando-se. A vida vai indo e a gente segue se carregando.

Cleuma chegou aos 49 anos dona de uma tralha emocional danada. Tanta quinquilharia, tanta lembrança empobrecida pela tristeza, tanta miudeza sem serventia de nada. Que atire a primeira pedra quem também não guarda.Tudo porque, lá atrás, alguém ensinou pra gente que avida é acúmulo de coisas. E ali, quando se viu sem quase nenhum espaço, quem sabe movida pela marca da idade, Cleuma decidiu por fazer uma faxina completa, que ela batizou de 'esvaziar-se'.

Se só ocupa e não preenche, eu não preciso. Se só pesa e não me importa, então não levo. Se só atrasa e não me ensina, não dou atenção — esta era sua oração interna de esvaziar-se, deixando tudo o que não merecia seguir com ela para trás. E esvaziando-se, se lembrou de como ficava bonita sorrindo, de como ficava leve dançando, de como ficava melhor sozinha e cercada de gente interessante.

E mais vazia sentiu saudade de quem há tempos não via e pegou a estrada para rever os amigos. E eles a lembraram de como ela podia ser engraçada e interessante. Vazia um pouco mais, sem o véu dos medos empoeirados, Cleuma percebeu que sua coragem estava apenas encoberta e parou de procurá-la nos outros. Após tanto tempo descobriu que só há espaço pra beleza da vida se deixamos o velho e partimos nós também para o novo. Esvaziou-se para caber-se inteira. 

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