Deixa como está

Deixa como está. Não daremos nome ao que temos vivido. Nomear é reduzir. Quando te perguntarem o que somos, diga que somos infinitos. Então deixa como está: você morre de saudades de mim e eu abro a porta, instantâneo. Eu reclamo sua falta e você fica um pouco mais, experimentando todas as minhas camisetas rotas que já aceitaram ser também teu tamanho.

E você será meu irmão e, ao mesmo tempo, amigo. Cheio de liberdades que eu não precisei te dar. Amante do meu silêncio, libertador do meu riso, cúmplice da demência que cava meus poros pacientemente através dos anos. E eu serei seu pai e ao mesmo tempo filho das tuas vontades. E enquanto nossas memórias se misturarem, seguiremos escalando as alturas um do outro com as dunas pequenininhas que moram na ponta dos dedos.

E ainda que todos os livros sobre deuses fossem adornados com respostas aos porquês das crianças; ainda que todas as cartas de Florbela Espanca estivessem escritas na língua do pê; ainda que todas as canções de amor se deitassem itálicas, preguiçosas; que todos os poetas solitários do mundo escrevessem um verso em um guardanapo numa mesma madrugada; ainda assim, não haveria palavras que suficientemente nos descrevessem.

Margear é encolher. Nós somos horizonte, que finge que emoldura, que se faz de borda, mas jamais aceita se deixar acabar. Descrever é resumir. Nós somos descoberta, obra aberta, história contada pelos anciãos. Então, deixa como está. Deixa que sigamos indigentes, perdidos na doçura que é do outro. Regidos pela lei universal que é a vontade de estar junto, a cada dia que se refaz.

E quando as covinhas da dúvida te sorrirem, e quando sentir o ímpeto numérico de saber até onde vamos, e quando a insegurança, aquela velhinha torta, vier perguntar, basta que você se procure na imensidão dos meus olhos quando eu te olho. Somos a busca de um pelo o outro e somos também encontro. Então, deixa como está.

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