Bênção

Chovia há dois dias seguidos. Minha mãe atravessou a cozinha determinada, pegou um graveto da porta e começou a desenhar algo no chão de terra laranja que polvilhava o quintal. Meus olhos de moleque se estiraram. Adulto no chão era algo que não se via o tempo todo. Ela estava desenhando. Ela estava desenhando um sol. Pouco tempo depois, a chuva calou e o sol se sacudiu lá fora. Incrível, mãe.

Lembrei-me hoje disso. Chuva danada aqui dentro de mim. Trovoadas nos pensamentos. Eu tenho sido pesado pra mim mesmo. Tem sido difícil me levar adiante. Desenhei essa manhã um sol pequetito no meu pulso. Com todos os pensamentos naquela manhã em que a minha infância se tornou mágica. Será possível que o sol se abra também em mim?

Repeti isso muitas vezes ainda quando criança. Mal anuviava, já corria eu com a vareta pra rabiscar o quintal. Na maioria das vezes, a chuva me ignorava, um besourinho. Mas quando ela respeitava meu ritual, quando desenhar um sol fazia mesmo parar de chover, todas as vezes que não haviam dado certo simplesmente desapareciam.

Claro, resultado do acaso, da imaginação dos pequenos. Deus está mais ocupado abrandando corações galvanizados. A luz precisa ser convidada para aquietar-se dentro da gente. O medo precisa entender que preferimos observar a coragem se espreguiçando. A dúvida precisa aceitar que ela passa e nós, como é de praxe, sobrevivemos. Após o tempo fechado, há temperança. A chuva permanece lá, a gente é que vai entendendo que às vezes nuvem também é bênção.

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