Vestido

Nem sete ainda e estou de pé, observando o frio correndo atrás das velhinhas lá fora. Limpei um restinho de pão do balcão com uma atenção especial e fiscalizei as primeiras bolhas brotando da água ainda morna. Sentei-me como se fosse assistir TV na poltrona larga da sala, mas não liguei nada, só fiquei ali, assistindo aos quadros perfeitamente alinhados. Refiz meus passos e fiz a pergunta que sempre me faço: o que estou sentindo agora?

E a resposta foi uma calma que me assustou, uma tranquilidade não costumeira, um silêncio mudo, eu não estava sentindo nada. Nem medo, nem pressa, nem saudade, nem alegria, nem insegurança, nem confiança exacerbada. Um nada imenso. Estava me sentindo leve, mas leveza é mais sentido que sentimento, como uma carroça de abóboras que faz sua entrega e leva embora os cavalos. Folha em branco, letreiro sem datas, vestido feito em casa pelas mãos miúdas da costureira, sem número, nem etiqueta, só razão de ser.

Liberado de todos os outros sentimentos, decidi vestir um qualquer como quem pega um agasalho no armário. Raramente a gente tem essa oportunidade, então, decidi me sentir grato. Era isso. Obrigado, porque descobri a tempo que me fazer feliz é mais importante, não da boca pra fora, mesmo, de verdade, defenda-se com a garra que protegeria um filho. A gente é filho de si mesmo. Obrigado, família, porque percebi cedo que flores sem raízes são somente intenção.

Obrigado, pelo ar que entra forte em meus pulmões, por poder ser testemunha da existência dos meus amigos, pela falta de memória do meu coração que sempre ama pela primeira vez outra e outra vez, pela compreensão de que tudo passa, inclusive as coisas pequenininhas que a gente quase nunca nota. Obrigado, por manter meus sonhos acesos e a minha dúvida curiosa. A gente raramente pode escolher o que sentir, mas sempre poderá escolher a que sentimentos dar de comer, já dizia Tientai. E a gratidão ecoou pelo espaço que havia por dentro.

Comentários

Leia também